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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

"Sombras queimadas" de Kamila Shamsie



"Sombras queimadas" de Kamila Shamsie acompanha a vida das pessoas em torno de uma japonesa sobrevivente do segundo ataque nuclear ao Japão em Nagasaki poucos momentos depois do seu pedido de casamento por um alemão ali desterrado.
A partir da explosão Hiroko fica para sempre marcada com as sombras das aves do quimono que experimentava quando daquela luz intensa, sombras que sente na alma em Deli para onde foi à procura dos familiares ingleses do seu noivo vítima da bomba, onde se dá a independência da Índia e a partilha do país que a empurra para o Paquistão onde viu os reflexos dos movimentos da guerra fria no Afeganistão nascerem, crescerem e as mudanças de atitude com o tempo de um ocidente aliado virar a inimigo e onde a loucura lhe trouxe novas perdas e novas sombras. Sombras que renascem em 2001 quando acolhida em Nova Iorque pelos primeiros que a receberam assistem ao 11 de setembro, que desencadeia novas ondas de loucura e mais perdas ligadas ao Afeganistão e se viu o medo semeado nos outros e só então Hiroko compreendeu porque foi aplaudido o lançamento da segunda bomba no seu País, quando na realidade os EUA já tinham tudo para vencer a guerra sem necessidade de tal dano.
O romance não acusa ninguém diretamente, mostra sim um conjunto de sombras deixadas em vítimas das muitas loucuras, tensões e incompreensões que têm dominado o mundo desde aquele longínquo 9 de agosto de 1945 em Nagasaqui, uma história de gente que conviveu com culturas e religiões bem distintas e mesmo assim foram capazes de amar, sofrer, proteger-se e ferir-se entre si. 
Apesar dos reais acontecimentos bélicos associados à violência como pano de fundo, Sombras queimadas é um romance que junta uma escrita elegante e suave, à paz e ternura emanada da protagonista que enche assim toda a obra de um sentimento calmo e nostágico de uma saga com duas famílias que se protegem e se destroem mutuamente ao longo de 60 anos, que sofrem mais do que compreendem o que se passa em cada momento. Uma magnífica obra que recomendo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"Deixa o Grande Mundo Girar" de Colum McCann


A partir de um facto real ocorrido em 1974, a travessia não autorizada de um funâmbulo por um cabo entre as duas torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque, Colum McCann desenvolve um conjunto de histórias independentes que de uma forma ou outra, no tempo ou no espaço, se cruzam ou foram tocadas por este ato assombroso e prosseguem depois o seu curso natural em coerência com A múltiplas estórias vai montando um retrato da diversidade social, cultural, étnica, económica e geográfica da cidade com as suas desconfianças, feridas e dores do povo de Nova Iorque de então, que permite compreender o mundo já no século XXI, pois, tal como uma das personagens explica "Por vezes temos de subir a um andar muito alto para ver o que o passado fez em nós".
O romance com um estilo de escrita fácil e realista tipicamente norte americano, onde se evidencia a influência de Don DeLillo ou Jonathan Franzen, mostra gentes com uma certa angústia existencialista e desnuda a sociedade e a cidade, expondo, com crueza, as suas injustiças e onde praticamente todos são de alguma forma vítimas neste mundo que continua a girar.
O romance foi premiado com o National Book Award de 2009, e gostei apesar de atravessado por uma quase permanente tristeza mas compensada por uma ternura quase omnipresente.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

"1984" George Orwell


O romance "1984", de George Orwell, é uma "sátira" ou um alerta sobre até onde os totalitarismos de meados do século XX poderiam levar a humanidade.
A obra de 1949 projeta um futuro sombrio em 1984, onde a revolução para criar uma sociedade sem classes foi subvertida com o fim único de se preservar como poder com o controlo total das ameaças ao edifício político construído. Ironicamente gera-se outra estratificação, a grande maioria continua esmagada, a prole; uma minoria faz de classe média e apoia uma ínfima parte que domina uma sociedade que se tornou globalmente mais pobre e onde os escassos privilégios para o topo são valorizados.
Com três máximas: guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força; explicadas em livro; com a criação de uma novilíngua que limite o pensamento por falta de conceitos que sirvam a argumentação da contestação; e com uma verdade oficial trabalhada; a classe dominante, com um mítico líder o "grande irmão" vigia tudo e todos, de facto não a prole que por si só não é um perigo.
O livro centra-se num protagonista da classe média, cuja profissão é alterar os arquivos da história para os acomodar à verdade do presente as vezes que for necessário, cuja memória questiona o presente e o passado e busca seres com dúvidas, cujo controlo deteta e o vai transformar para que no seu íntimo acredite que a verdade do partido é absoluta e rejeite até a incoerência desta com as recordações, a lógica e a verdade científica.
Este excelente romance é um perfeito complemento a "O Maravilhoso Mundo Novo" de Aldous Huxley, onde era a técnica para a predestinação e a alienação que tornava os seres apáticos e a aceitarem a sua distopia; agora é a psicologia através da omnipresença da vigilância, o controlo absoluto da mente e da informação que o faz a pessoa acreditar na verdade oficial e até temer a dúvida. Um magnífico livro, um bom suporte à reflexão sobre as estratégias para a instalação e preservação do totalitarismo absoluto.